O VALOR DO JEJUM PARA A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
Pe. Ednilson de Jesus, MIC // Reitor do Santuário da
Divina Misericórdia (Curitiba)
INTRODUÇÃO:
Queremos refletir, neste breve artigo,
sobre o valor do jejum para a espiritualidade cristã e para o aprofundamento da
intimidade com o Senhor. Nossa reflexão será orientada por 8 questões
fundamentais. Não queremos esgotar o assunto, pois a riqueza do tema é muito
grande. Apresentamos apenas algumas linhas de orientação para que cada qual
possa aprofundar o estudo desse magnífico meio de crescimento espiritual.
1. O QUE A IGREJA FALA SOBRE O JEJUM?
A Igreja reconhece o valor e o
significado profundo do jejum para a espiritualidade cristã. O quinto
mandamento da Igreja nos orienta a “Jejuar
e abster-se de carne, conforme manda a Santa Mãe Igreja” (Catecismo, 2043). Entre os chamados
Padres da Igreja, os primeiros teólogos das origens cristãs, Santo Agostinho reconhece o valor
espiritual e moral do jejum: “a
abstinência purifica a alma, eleva a mente, subordina a carne ao espírito, cria
um coração humilde e contrito, espalha as nuvens da concupiscência, extingue o
fogo da luxúria e acende a verdadeira luz da castidade” (Sermão sobre a oração e o jejum).
Em nosso tempo, a Igreja ainda
recomenda a prática do jejum. O jejum é
citado no Catecismo da Igreja Católica em 9 parágrafos específicos. Os
parágrafos são: 575, 1387,1430, 1434, 1438, 1755, 1969, 2043 e 2742. Síntese
desse ensinamento é a mensagem de que os gestos exteriores (saco e cinzas,
jejuns e mortificações) não devem ser vazios, mas devem ser acompanhados da
conversão do coração ou da penitência interior: é por essa razão que o jejum é
associado ao Sacramento da Reconciliação.
Além do jejum, a oração e a esmola aparecem como as principais formas de
expressão da penitência interior. Assim, o jejum, a oração e a esmola
representam a conversão em relação a si mesmo, a Deus e aos outros (Catecismo,
1434). Como afirmou o Papa Bento XVI, na homilia da celebração da Quarta-Feira
de Cinzas, “em relação harmoniosa com a
oração, também o jejum e a esmola podem ser considerados lugares de
aprendizagem e prática da esperança cristã”.
O Concílio Vaticano II assim nos
ensina: “A penitência do tempo quaresmal
não deve ser somente interna e individual, mas também externa e social.
Fomente-se a prática penitencial de acordo com as possibilidades de nosso
tempo, dos diversos países e da condição dos fiéis(...). Tenha-se como sagrado
o jejum pascal que há de celebrar-se em todos os lugares na Sexta-feira da
Paixão e Morte do Senhor e ainda estender-se segundo as circunstancias, ao
Sábado Santo, para que deste modo cheguemos
à alegria do
Domingo da Ressurreição
com ânimo elevado
e grande entusiasmo” (Sacrosanctum Concilium, n. 110).
Para Bento XVI, “jejuar significa aceitar um aspecto essencial da vida cristã. É
necessário redescobrir também o aspecto corporal da fé, a abstinência do
alimento é um desses aspectos” (Joseph
Ratzinger, no livro A Fé em crise?).
2. SEGUNDO A BÍBLIA O QUE DEUS NOS FALA SOBRE O JEJUM?
O Antigo Testamento é rico em passagens
que revelam a prática do jejum associada à vida espiritual. Eis apenas alguns
exemplos: Lv 16,29; Nm 29,7; 1Rs 21,9; Esd 8,21; Tb 12,8; Jl 1,14, 2Sm 12,16. No livro do Gênesis pode-se encontrar
uma primeira referência
ao jejum, ainda
que indireta, na ordem de Deus: “Podes
comer do fruto de todas as árvores, do jardim, mas não comas do fruto
da árvore da
ciência do bem do mal, porque
no dia em
que dele comeres,
morrerás indubitavelmente” (Gn
2, 16-17).
Na cultura judaica, o jejum era
cumprido rigorosamente, o que é atestado pelos constantes desencontros de Jesus
com os fariseus a respeito do tema (Mc 2,18; Lc 5,33). Jesus jejuou durante
quarenta dias e quarenta noites, depois do seu batismo (Mt 4,2). O jejum de Jesus precede o início da
pregação de Jesus (Mt 4,17), a escolha dos primeiros discípulos (Mt 4, 18-22),
as primeiras curas (Mt 4,23-25) e o sermão sobre as bem-aventuranças (Mt
5,1-12). O jejum é necessário para o apostolado. Aumenta nossa intimidade com Deus Pai e
potencializa nossa oração (Mt 17,14-20;
Mc 9,29). Com efeito, Jesus declarou
certa ocasião: ”quanto a esta espécie de demônio, só se pode expulsar à força
de oração e de jejum”. O Livro de Atos registra os crentes jejuando antes de
tomarem importantes decisões (Atos 13:4; 14:23).
São Paulo dá um sentido mais amplo ao
jejum, inserindo-o nas práticas que nos ajudam a viver segundo o Espírito e não
apenas segundo a carne: “Portanto irmãos,
não somos devedores da carne, para que vivamos segundo a carne. De fato, se
viverdes segundo a carne, haveis de morrer; mas, se pelo Espírito mortificardes as obras
da carne, vivereis, pois todos os que
são conduzidos pelo Espírito de
Deus são filhos de Deus (Rm 8,
13-14).
3. COMO PREPARAR-SE PARA PRATICAR O JEJUM?
O jejum é um sinal externo da conversão
do coração. Portanto, sua preparação exige um profundo exame de consciência e
uma atitude de contrição, de arrependimento de nossas fraquezas e um propósito
firme de mudança de vida. Pela boca do profeta Isaías, o Senhor revela o
sentido da conversão que deve acompanhar o jejum: “Sabeis qual é o jejum que eu aprecio? - diz o Senhor Deus: É romper as
cadeias injustas, desatar as cordas do jugo, mandar embora livres os oprimidos,
e quebrar toda espécie de jugo” (Is
58, 6).
4. COMO PRATICAR O JEJUM?
O jejum deve estar associado a uma
visão positiva da vida espiritual, o que impede que seja compreendido como uma
pena ou sacrifício ruim. Deve, portanto,
expressar a alegria, a fé e a esperança. É Jesus mesmo quem nos ensina a esse
respeito: “Quando jejuardes, não tomeis
um ar triste como os hipócritas, que mostram um semblante abatido para
manifestar aos homens que jejuam. (...) Quando jejuares, perfuma a tua cabeça e
lava teu rosto Assim não parecerá aos homens que jejuas, mas somente a teu Pai,
que vê no segredo” (Mt 6,16-18).
5. QUAIS OS BENEFÍCIOS E EFEITOS DO JEJUM?
Os benefícios do jejum vão além da vida
espiritual. Eles cobrem muitos aspectos da vida humana. Além do domínio dos
vícios, o jejum enobrece a mente, auxilia alcançar as virtudes da sabedoria, da
prudência e temperança, promove o bem-estar, recupera as perdas espirituais e
nos prepara para a batalha do dia-a-dia da fé; por isto é eficaz em quatro
áreas fundamentais.
a)
Alimentar e física:
• Disciplina a forma desordenada e
irregular de comer e o mau hábito de
beliscar entre as refeições, fumar, tomar café, chás, doces lanches e
refrigerantes, a todo instante;
• Elimina o reprovável desperdício e
ensina a conhecer o valor nutritivo dos alimentos vegetais e animais e a
importância dos produtos naturais, orgânicos;
• Torna o corpo mais saudável através
do bom funcionamento do sistema digestivo e possibilita aumento a expectativa
de vida.
b)
Mental e psicológica:
• Mantém a mente descansada, mais
aberta e sensível às coisas espirituais, atividades e à criatividade
intelectual em diversas áreas;
• Aumenta a estabilidade mental e
psicológica através do domínio das emoções, torna o corpo leve, ativo e
incansável (a história demonstra que os filósofos pagãos, na Grécia antiga,
para um melhor desempenho intelectual, jejuavam espontaneamente antes de
entrarem em debates públicos).
c)
Moral e religiosa:
• Supera as dependências e apegos às
coisas materiais supérfluas e amplia a consciência do ser;
• Fortalece a vontade, renova a força
moral e consolida os verdadeiros valores e a fé;
• Estimula a partilha com generosidade
e abre o nosso coração à caridade, oferecendo aos necessitados, os que sofrem,
aquilo que vem a sobrar em nossas despensas: “Boa coisa é a oração acompanhada de jejum, e a esmola é preferível aos
tesouros de ouro escondidos” (Tb
12,8)
• Traz o domínio sobre a presunção, a
indolência espiritual e moral e intensifica a genuína piedade.
d)
Vida de fé:
• Prepara para uma intensa participação
nos mistérios da Fé, nos Sacramentos, em particular da Penitência ou Confissão
e da Eucaristia.
E
produz:
• Maior qualidade de vida interior,
vida na graça e união íntima, real, natural, pessoal e constante com Deus;
• Docilidade e abertura às inspirações
do Espírito Santo;
• Maior silêncio, busca da meditação,
confiança e disposição para a adoração;
• Maior disponibilidade para servir,
para a missão e para o próximo;
• Libertação a partir da renúncia à
gula, luxúria, preguiça e demais pecados capitais;
• É uma poderosa arma contra as
tentações do Inimigo;
• Portanto não deve ser visto como um
dever, mas um direito que nos abre à Graça.
6. QUAIS OS PREJUÍZOS QUANDO NÃO PRATICAMOS O JEJUM?
O maior prejuízo, sem dúvida, é
deixar-se levar pelas tendências humanas da “vida segundo a carne”, como nos
ensina São Paulo (Rm 8). Não se trata de viver o dualismo corpo e espírito,
muito enfatizado na Idade Média, que via
como mal e pecaminoso tudo o que se relacionava ao corpo. Isso, de
fato, é um exagero e não corresponde à doutrina cristã: Deus, que criou-nos
também o corpo, “viu que tudo era bom” (Gn 1,31).
7. QUAL A REGULARIDADE PARA PRATICAR O JEJUM?
O jejum não deve ser praticado em demasia
e exagero, pois isso causa prejuízo ao corpo, constituindo-se nesse caso um mal
e não um bem. É preciso bom senso e equilíbrio. No Código de Direito Canônico,
a Igreja nos ensina que “os dias e tempos
penitenciais, em toda a Igreja, são todas as sextas-feiras do ano e o tempo da
quaresma” (Cân. 1250). E ainda: “Observe-se a abstinência de carne ou de
outro alimento, segundo as prescrições da conferência dos Bispos, em todas as
sextas-feiras do ano, a não ser que coincidam com algum dia enumerado entre as
solenidades; observem-se a abstinência e o jejum na quarta-feira de Cinzas e na
sexta-feira da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Can. 1251).
Há também a orientação da Igreja para o
jejum que prepara a participação na Eucaristia: “Quem vai receber a Santíssima Eucaristia abstenha-se de qualquer
comida ou bebida, excetuando-se somente água e remédio no espaço de ao menos
uma hora antes da sagrada comunhão” (Can.
919).
8. QUEM PODE E QUEM DEVE PRATICAR O JEJUM?
Conforme o ensinamento da Igreja, no
Código de Direito Canônico, “todos os
fiéis, cada qual a seu modo, estão obrigados por lei divina a fazer penitência;
mas, para que todos estejam unidos mediante certa observância comum da
penitência, são prescritos dias penitenciais, em que os fiéis se dediquem de
modo especial à oração, façam obras de piedade e caridade, renunciem a si
mesmos, cumprindo ainda mais fielmente as próprias obrigações e observando
principalmente o jejum e a abstinência, de acordo com os cânones seguintes”
(Can. 1249).