O assunto que vamos abordar é inesgotável, pois “Lectio Divina”, significa “leitura de Deus”, e a Deus nunca vamos acabar de ler. Arte de estudar o coração de Deus, segundo a harmoniosa definição de São Gregório Magno, a leitura participa de certo modo, da intimidade de seu objetivo próprio. Por isso, quanto mais se estuda, mais qualidades se descobrem nela, mais ricos se revelam os múltiplos aspectos que apresenta. Ao dar por concluídos nossos colóquios, teremos a impressão de que apenas havíamos abordado o assunto.
“Adão, onde estás?”
A voz do Todo-Poderoso ressoa no Paraíso. Deus buscava o homem que havia
plasmado à sua imagem e semelhança. Queria falar com ele, como todos os dias,
quando passava pelo jardim, à hora da brisa da tarde. Adão, o homem, havia
desobedecido ao seu Criador e se havia escondido. O pecado do homem destruiu
brutalmente a familiaridade com Deus. Isto é o que quis dizer o Gênesis em suas
primeiras páginas.
O homem perdeu a doce e terna liberdade de expressão que lhe permitia falar a Deus como um filho fala a seu pai, como um amigo fala a seu amigo. O homem perdeu a Deus, seu criador e pai, e Deus perdeu o homem, sua imagem e semelhança, seu filho interlocutor. E, desde essa época, Deus busca o homem, e ele tem de buscar a Deus.
“Buscar a Deus”
é uma ocupação absorvente. Abarca toda a vida e toda a pessoa. É como o amor de
Deus: “Escuta, Israel, o Senhor nosso
Deus é o único Senhor; amarás o Senhor teu Deus com todo o coração, de toda a
tua alma, de todo o teu espírito e de todas as tuas forças” (Mc 12,29-30).
A
busca e o encontro pessoal com Deus se verificam no diálogo. O verdadeiro Deus,
o Deus vivo, que fala e com quem se pode falar, o Deus que quer comunicar a
plenitude da existência e se abaixa para elevar-nos a seu mesmo nível.
O
verdadeiro homem, imagem de Deus, que quer encontrar o Criador, que dele se
havia afastado, assim converge a sede de Deus em encarnar-se em homem e a sede
do infinito que atormenta o coração humano. O Deus que nos persegue porque nos
deseja, e o homem que busca ansiosamente a Deus de que necessita.
Para a tradição cristã primitiva, o diálogo com Deus tem
dois tempos: a leitura e a oração. São Cipriano de Cartago aconselha Donato: “Sê assíduo tanto à oração como à leitura.
Ora falas tu com Deus, ora Deus contigo” (Ad Donatum, 15). São Jerônimo diz ao anacoreta Bonosco: “Ora ouves a Deus quando recorres à leitura
dos livros sagrados, ora falas com Deus quando fazes oração ao Senhor” (Ep. 3,4). Santo Ambrósio de Milão
escreve: “A Deus falamos quando oramos, a
Deus ouvimos quando lemos suas palavras” (De officiis Ministorum 1,20,88). Santo Agostinho, comentando o
salmo 85, diz: “Tua oração é um colóquio
com Deus. Quando lês, te fala Deus; quando oras, tu falas a Deus” (Enarr. In os 85,7).
Os mesmos conceitos se têm repetido inúmeras vezes nos
autores antigos e medievais. Assim, por exemplo, em uma carta sobre a vocação
monástica: “Fala a Deus orando; escuta,
lendo a Deus que te fala”. E Bernardo Aygler, abade de Montecasino: “Assim como falamos com Deus quando orando,
assim Deus fala conosco quando lemos a Sagrada Escritura”. Por isso São
Bento não só nos exorta a nos entregarmos à oração, mas quer que nos ocupemos
assiduamente da leitura. Nos nossos dias, o Concílio do Vaticano II citou o
texto de Santo Ambrósio: “Lembrem-se,
porém, que a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada pela oração, a
fim de que se estabeleça um colóquio entre Deus e o homem. Pois “com ele
falamos quando rezamos, e ele ouvimos quando lemos os divinos oráculos” (Dei Verbum, 25).
“Lectio Divina”,
que quer dizer, também, leitura orante, indica a prática de leitura que os
cristãos fazem da Bíblia para alimentar sua fé, sua esperança, seu amor e
compromisso.