Requisitos e disposições para a Lectio Divina
1. Um ambiente favorável
O clima propício para a “Lectio Divina” deve estar
integrado de paz exterior e interior, sobretudo interior, de caridade fraterna;
sem caridade não há paz verdadeira, de silêncio, de tempo livre... Sobre o
silêncio, tão necessário para escutar, observa Dietrich Bonhaffer: “Calamo-nos antes de escutar, porque nossos
pensamentos estão dirigidos para a mensagem, como um filho que se cala no
momento de entrar no quarto de seu pai. Calamo-nos depois de ter escutado a
Palavra de Deus, porque ela ressoa, viva, e quer habitar em nós”.
2. Pureza de coração
Mas é claro que não bastam um ambiente propício, uma
preparação, uma formação idônea do tipo intelectual. Cassiano, grande mestre dos
monges, não se cansa de repetir que a ciência humana, o estudo dos
comentaristas da Bíblia, de pouco ou de nada serve para alcançar a
“inteligência espiritual” da Escritura que alimenta o “homem interior”, a vida
de união com Deus. Mas o que se necessita antes de tudo e sobretudo é a pureza
do coração.
Disse Cassiano pela boca do Abade Nesteros na famosas
Colaciones (14,9): “Se desejais chegar à luz da ciência espiritual... inflamai
antes todo desejo da bem aventurança que diz: ‘Bem-aventurados os corações puros, porque verão a Deus!’ (Mt 5,8). Somente depois de extirpar os
vícios e adquirir a humildade, será penetrar até o coração das palavras
celestes e contemplar com o olhar puro da alma os mistérios mais profundos e
escondidos.
‘Não estamos na ciência humana, nem na cultura dos
homens, mas tão somente na pureza da alma, iluminada pela luz do Espírito
Santo’. Deste modo, à medida que vamos progredindo na purificação interior e na
leitura humilde e assídua, nosso espírito vai-se renovando e nos parecerá que a
Sagrada Escritura começa a falar para nós. Comunica-nos uma compreensão mais
funda e misteriosa, cuja beleza vai aumentando em razão direta de nosso
progresso. O texto inspirado acomoda-se na capacidade receptiva da inteligência
humana”.
Por isso, aos homens carnais a Escritura parece coisa
terrena, aos espirituais, coisa celestial e divina. E aqueles que vinham antes
envolvidos em espessas trevas são agora capazes de sondar sua profundidade e
sustentar seu fulgor com o olhar” (Conl.
14,11).
3. Desprendimento
e docilidade
Outras disposições fundamentais para encontrarmos a Deus
que nos espera na Escritura são a sensibilidade, o desprendimento, a docilidade
e a entrega. O Cardeal Eduardo F. Pironio escreve: “A palavra de Deus é simples. Temos de penetrá-la com alma de pobre e
coração contemplativo. Somente assim nasce em nós o gosto da sabedoria. Assim
sucedeu em Maria, a virgem pobre e contemplativa, que recebeu em silêncio a
Palavra, a realização na obediência da fé” (Lc 11,27). Infelizmente, “às vezes nós complicamos o Evangelho e
assim não entendemos a claridade e a força de suas exigências. Possivelmente
olhamos o Evangelho a partir de nós mesmos”. Mas a palavra de Deus transcende
nossa realidade e tem-se de entrar nela a partir da profundidade do espírito: “penetra tudo, mesmo as profundezas de Deus”
(1Cor 2,10).
O desprendimento (desapego, desinteresse) deve
liberar-nos, como disse A. Southey, do “desejo ansioso dos resultados”. Pois
não se deve ir em busca de sentimentos, de experiências, de idéias bonitas para
comunicar aos demais... A “Lectio Divina” é um trabalho de larga duração, que
leva a uma profundidade incessante, mas normalmente imperceptível, de nossa
intimidade com Deus.
Devemos acorre à Bíblia não para o que ela pode extrair
de nós, mas para o que podemos extrair dela. Isto é muito importante. Para que
a leitura de Deus seja autêntica, é preciso ir a ela com espírito de entrega de
perfeita disponibilidade ao que o Senhor vai pedir-nos.
Segundo São Gregório Magno, exímio mestre da “Lectio
Divina”, saber ler a Escritura pode converter-se em uma definição do cristão à
medida que esta leitura seja existencial e não somente um exercício superficial
da inteligência. “Como estão os bons
criados sempre atentos aos olhos de seus senhores para executar sem demora o
que ordenam, assim também o espírito dos justos permanecerá atento à presença
de Deus Todo-Poderoso. Fixando os olhos na Escritura como se se tratasse de sua
boca. Porque, como na Escritura, Deus expressa sua vontade; quanto mais a conhece
através de sua Palavra, tanto menos se aparta dela. Não ressoe em seus ouvidos
sem deixar marcas, sem que se grave em seus corações” (Mor 16,35,43).
Um dos segredos da santidade de Santa Teresinha do Menino
Jesus, talvez o principal, era sua plena aceitação da Palavra de Deus para
realizá-la e vivê-la. Jamais tentou acomodá-la a seu caminho, mas acomodou seu
caminho à Palavra de Deus, de um modo total e absoluto.
A “Lectio Divina” exige entrega sincera, “puritatis devotio”, de quem a pratica.
Supõe-se que o leitor “se abandone em Deus, que ele está falando e lhe concede
uma relação de coração”, segundo a bela expressão dos padres da companhia de
Jesus reunidos em suas 31 congregações gerais.
4. Espírito de
oração
Devemos buscar a Escritura não para entreter-nos, nem
para estudar, senão para subir ao altar de Deus, com grandes preparativos de
alma e corpo. Deus no-la oferece para que leiamos em seu coração, chama-nos a
sua intimidade. Mas este contato com Deus não pode efetuar-se senão em um clima
de fé viva e, como escreve A. Southey, “requer
que nós nos preparemos com uma atitude de desejo humilde, numa atitude de
oração”.
Os Padres têm firmado um princípio fundamental:
compreender a Escritura é um dom de Deus. São Gregório Magno, por exemplo, diz
que “a Palavra de Deus não pode penetrar
sem sua sabedoria, e o que não recebeu seu Santo Espírito não pode de modo
algum entender sua Palavra” (Mor 18,39,60). Marcos Ermitaño ensina que “o
Evangelho está fechado para os esforços do homem; abri-lo é um dom de Cristo”.
Por isso São João Crisóstomo orava diante da Bíblia: “Senhor Jesus Cristo, abre os olhos de meu coração..., ilumina meus
olhos com tua luz..., tu somente és a única luz”.
Antes de toda leitura, suplique a Deus para que se revele a ti. Sim, a leitura divina é um dom da graça, tem de suplicar ao Senhor da graça que no-lo conceda. Somente a oração humilde, sincera, amorosa, pode pograr que o que dizem as Escrituras nos abra seu sentido profundo.