MÉTODO - DEGRAUS DA LECTIO DIVINA
Os quatro degraus da “Lectio Divina” são: leitura, meditação, oração e contemplação. Nem sempre é fácil distinguir um do outro. Trata-se de um processo dinâmico de leitura, em que várias etapas nascem uma da outra. É como a passagem da noite para o dia. As quatro atitudes existem e atuam, juntas, durante todo o processo da “Lectio Divina”, embora em intensidade diferente, conforme o degrau em que a pessoa ou a comunidade se encontra.
1. Leitura: “Conhecer, respeitar, situar”
A leitura é o primeiro passo para se conhecer e amar a
Palavra de Deus. Não se ama o que não se conhece.
É o primeiro passo do processo de apropriação da Palavra,
lei para familiarizar-se com a Bíblia, para que ela se torne nossa palavra,
capaz de expressar nossa vida e nossa história, pois ela “foi escrita para nós que tocamos o fim dos tempos” (1Cor 10,11).
A leitura deve ser perseverante e diária. Exige ascese e
disciplina. Não pode ser interesseira, mas deve ser desinteressada e gratuita.
A leitura é o ponto de partida, não é o ponto de chegada.
Prepara o leitor e o texto para o diálogo da meditação, deve ser feita com
critério e atenção. “Estudo assíduo,
feito com o espírito atento”, dizia Guigo.
Através de um estudo imparcial, a leitura impede que o
texto seja manipulado e reduzido ao tamanho da nossa idéias. Assim, a leitura cria
no leitor uma atitude crítica, criteriosa e respeitosa diante da Bíblia. É aqui
na leitura que entra a contribuição da exegese.
A leitura, entendida como estudo crítico, ajuda o leitor
a analisar o texto e a situá-lo em seu contexto de origem. Esse estudo
dividi-se em três níveis:
Literário:
aproximar-se do texto e, através de perguntas bem simples, analisar o seu
tecido: Quem? O quê? Onde? Por quê ? Quando? Como? Com que meios? Como o texto
se situa dentro do contexto literário do livro de que faz parte?
Histórico:
através do estudo do texto, atingir o contexto histórico em que surgiu o texto
ou em que se deu o fato narrado pelo texto, e dimensões como: econômica,
social, política, ideológica, afetiva, antropológica e outras. Trata-se de
descobrir os conflitos que estão na origem do texto, ou nele se refletem, para,
assim, perceber melhor a encarnação da Palavra de Deus na realidade conflitiva
da história humana.
Teológico:
descobrir, através da leitura do texto, o que Deus tinha a dizer ao povo
naquela situação histórica, o que Deus significava para aquele povo, como ele
se revelava, como o povo assumia e celebrava a Palavra do Senhor.
O estudo científico do texto não é o fim da leitura. É
apenas um meio para se chegar ao fim. A intensidade do uso da exegese depende
não do exegeta, mas da exigência e circunstâncias do leitor. A leitura rompe a
distância entre o ontem dom texto e o hoje da nossa vida, a fim de poder
iniciar o diálogo com Deus na meditação. Paulo VI dizia que se deve “procurar certa conaturalidade entre os
interesses atuais e o assunto do texto, para que se possa estar disposto a
ouvi-lo (diálogo)” (25-09-1970).
“Vejam se seguram
as palavras divinas de forma a não deixá-las cair, escapar das mãos, e assim
perdê-las. Quero exortá-los com um exemplo tirado dos costumes religiosos. Quem
assiste habitualmente aos Divinos Mistérios sabe com que precaução, cheia de
respeito, segura o Corpo do Senhor, quando lhe é entregue; não vá cair alguma
migalha e perder-se uma parte do tesouro sagrado. Sentir-se-ia culpado, e com
razão, se por negligência alguma coisa se perder: Se quando se trata do Corpo
do Senhor se tem tanto cuidado, como pensar que negligenciar a Palavra de Deus
tem menos importância?” (Orígenes,
Hom. Ex. 13 S. C. 16 p. 263).
Este texto lembra-nos imediatamente avocação de Samuel,
quando a Bíblia diz que ele não deixava cair no vazio nenhuma Palavra do
Senhor.
A “Lectio Divina” é uma leitura orante. Esta leitura
supõe a fé. É a certeza de um encontro. No livro de Santa Gertrtudes, o Arauto do Amor Divino, acha-se o
seguinte: “Se alguém me procurar nestas
páginas, vou atraí-lo para junto de mim, participarei da sua leitura, como se
tivesse o livro nas minhas mãos. Quando duas pessoas lêem juntas, no mesmo
livro, uma parece respirar o sopro da outra. Assim eu vou aspirar o sopro dos
desejos dessa alma, e eles vão comover em meu favor as entranhas da minha
misericórdia; e farei com que ela respire o sopro da minha divindade e será
toda renovada interiormente”.
Este texto diz
muito bem sobre o encontro e o que acontece naquele que lê. Quando faço
“Lectio”, procuro o Senhor na palavra: “se alguém me procurar...” . É como se
Jesus segurasse o livro em suas mãos. Ao ler, a leitura desperta os desejos
(“vou aspirar os desejos dessa alma”) que vão comover as entranhas de
misericórdia do Senhor. Aquele que lê é renovado interiormente.
A Escritura nasceu em comunidades vivas. Quando lemos
sozinhos, estamos rodeados de uma multidão de testemunhas. A “Lectio Divina” é
o prolongamento da Liturgia da Palavra, na comunidade cristã, durante a Eucaristia.
É uma palavra não só para mim, mas, na fé, tem repercussão na Igreja.
Pedir o Espírito Santo, conscientizar-se de que é um
privilégio único e sinal de aliança, poder escutar a Palavra de Deus. Pôr-se
todo na escuta.
Devemos ler, reler, voltar a ler. Pronunciar bem as palavras,
se possível em voz alta; como em uma carta desejada, não nos contentamos com
uma leitura só, e sabemos até ler nas entrelinhas.
Todos temos dificuldades em ler. Há o vício de ler em
diagonal, ler depressa demais, ler para encher o tempo, falta de gosto pela
leitura, falta de tempo, de interesse, de método. Pertencemos à civilização da
imagem, espectadores passivos da TV ou das revistas. É necessário toda uma
aprendizagem, e uma ascese. Ter tempo fixo é ser fiel.
A leitura não pode depender do gosto do momento. A
leitura séria impede que o texto seja manipulado e reduzido ao tamanho da nossa
idéia.
Ler, copiar o texto mais de uma vez. Ler os lugares
paralelos indicados na Bíblia ou nas notas. “A Escritura se interpreta por si
mesma” é o grande critério rabínico da “Lectio”.
A Palavra pode ser difícil, estranha, exigente, não dizer
nada. Há vazios, silêncios. Não fugir do vazio da tentação de escutar rádio ou
folhear revista é lamentável. Não ter medo de sentir a incapacidade de rezar e
de o experimentar é uma graça.
“Abre a Bíblia e lê o texto. Não escolhas ao acaso,
porque não se desperdiça a Palavra de Deus. Obedece ao lecionário litúrgico e
aceita o texto que a Igreja te oferece hoje, ou então, lê um livro da Bíblia do
princípio ao fim. Obediência ao lecionário ou obediência ao livro são
essenciais para uma obediência cotidiana, para uma continuidade da “Lectio”,
para não cair no subjetivismo da escolha de um texto que agrade ou do qual se pense
ter necessidade. Procura ser fiel a este princípio. Escolhe talvez um livro
indicado pela tradição da Igreja para diversos tempos no ano litúrgico, ou uma
das leituras do lecionário ferial. Não multipliques os textos: uma passagem,
uma perícope, alguns versículos são mais suficientes! E, se fazes a “Lectio”,
nos textos de domingo, lembra-te que a primeira leitura (Antigo Testamento) e a
terceira (Evangelho) são paralelas e que és convidado a rezar com estes dois
textos. O lecionário das festas é um grande dom, escolhido com muita sabedoria
espiritual. O lecionário ferial é mais descontínuo; se isto te atrapalha, é
preferível, então, fazer uma leitura contínua de um livro escolhido”. “Seja tua
leitura uma escuta (audire) e a escuta se torne obediência (abauride)”.
“Não leias simplesmente com os olhos, mas procura
imprimir o texto em teu coração”. Guigo compara a palavra a um cacho de uva que
a alma examina, volta o coração e começa a mastigar e triturar e a põe no
lagar, enquanto excita a razão a procurar o que é e como pode ser adquirida.
Qual o momento de passar da leitura para a meditação? É
dificil precisar o momento exato em que a natureza passa da primavera para o
verão.
O objetivo da leitura é ler e estudar o texto até que
ele, sem deixar de ser ele mesmo, se torne espelho para nós mesmos e nos
reflita algo da nossa própria experiência de vida. A leitura deve
familiarizar-nos com o texto a ponto de ele se tornar nossa palavra. Cassiano
dizia: “Penetrados dos mesmos sentimentos em que foi escrito o texto,
tornamo-nos, por assim dizer, os seus autores”. E aí, como que de repente,
damo-nos conta de que, por meio dele, Deus está querendo falar conosco e nos
dizer alguma coisa. Nesse instante, dobramos a cabeça, fazemos silêncio abrimos
o ouvido: “Vou ouvir o que o Senhor nos tem a dizer!” (Sl 85,9). É nesse
momento que a leitura se transforma em meditação.