ARAUTOS DA SALVAÇÃO - Ai de mim se não evangelizar

Lectio Divina - Aula 06

MÉTODO - DEGRAUS DA LECTIO DIVINA

 

Os quatro degraus da “Lectio Divina” são: leitura, meditação, oração e contemplação. Nem sempre é fácil distinguir um do outro. Trata-se de um processo dinâmico de leitura, em que várias etapas nascem uma da outra. É como a passagem da noite para o dia. As quatro atitudes existem e atuam, juntas, durante todo o processo da “Lectio Divina”, embora em intensidade diferente, conforme o degrau em que a pessoa ou a comunidade se encontra.


1. Leitura: “Conhecer, respeitar, situar”

A leitura é o primeiro passo para se conhecer e amar a Palavra de Deus. Não se ama o que não se conhece.

É o primeiro passo do processo de apropriação da Palavra, lei para familiarizar-se com a Bíblia, para que ela se torne nossa palavra, capaz de expressar nossa vida e nossa história, pois ela “foi escrita para nós que tocamos o fim dos tempos” (1Cor 10,11).

A leitura deve ser perseverante e diária. Exige ascese e disciplina. Não pode ser interesseira, mas deve ser desinteressada e gratuita.

A leitura é o ponto de partida, não é o ponto de chegada. Prepara o leitor e o texto para o diálogo da meditação, deve ser feita com critério e atenção. “Estudo assíduo, feito com o espírito atento”, dizia Guigo.

Através de um estudo imparcial, a leitura impede que o texto seja manipulado e reduzido ao tamanho da nossa idéias. Assim, a leitura cria no leitor uma atitude crítica, criteriosa e respeitosa diante da Bíblia. É aqui na leitura que entra a contribuição da exegese.

A leitura, entendida como estudo crítico, ajuda o leitor a analisar o texto e a situá-lo em seu contexto de origem. Esse estudo dividi-se em três níveis:

Literário: aproximar-se do texto e, através de perguntas bem simples, analisar o seu tecido: Quem? O quê? Onde? Por quê ? Quando? Como? Com que meios? Como o texto se situa dentro do contexto literário do livro de que faz parte?

Histórico: através do estudo do texto, atingir o contexto histórico em que surgiu o texto ou em que se deu o fato narrado pelo texto, e dimensões como: econômica, social, política, ideológica, afetiva, antropológica e outras. Trata-se de descobrir os conflitos que estão na origem do texto, ou nele se refletem, para, assim, perceber melhor a encarnação da Palavra de Deus na realidade conflitiva da história humana.

Teológico: descobrir, através da leitura do texto, o que Deus tinha a dizer ao povo naquela situação histórica, o que Deus significava para aquele povo, como ele se revelava, como o povo assumia e celebrava a Palavra do Senhor.

O estudo científico do texto não é o fim da leitura. É apenas um meio para se chegar ao fim. A intensidade do uso da exegese depende não do exegeta, mas da exigência e circunstâncias do leitor. A leitura rompe a distância entre o ontem dom texto e o hoje da nossa vida, a fim de poder iniciar o diálogo com Deus na meditação. Paulo VI dizia que se deve “procurar certa conaturalidade entre os interesses atuais e o assunto do texto, para que se possa estar disposto a ouvi-lo (diálogo)(25-09-1970).

“Vejam se seguram as palavras divinas de forma a não deixá-las cair, escapar das mãos, e assim perdê-las. Quero exortá-los com um exemplo tirado dos costumes religiosos. Quem assiste habitualmente aos Divinos Mistérios sabe com que precaução, cheia de respeito, segura o Corpo do Senhor, quando lhe é entregue; não vá cair alguma migalha e perder-se uma parte do tesouro sagrado. Sentir-se-ia culpado, e com razão, se por negligência alguma coisa se perder: Se quando se trata do Corpo do Senhor se tem tanto cuidado, como pensar que negligenciar a Palavra de Deus tem menos importância?” (Orígenes, Hom. Ex. 13 S. C. 16 p. 263).

Este texto lembra-nos imediatamente avocação de Samuel, quando a Bíblia diz que ele não deixava cair no vazio nenhuma Palavra do Senhor.

A “Lectio Divina” é uma leitura orante. Esta leitura supõe a fé. É a certeza de um encontro. No livro de Santa Gertrtudes, o Arauto do Amor Divino, acha-se o seguinte: “Se alguém me procurar nestas páginas, vou atraí-lo para junto de mim, participarei da sua leitura, como se tivesse o livro nas minhas mãos. Quando duas pessoas lêem juntas, no mesmo livro, uma parece respirar o sopro da outra. Assim eu vou aspirar o sopro dos desejos dessa alma, e eles vão comover em meu favor as entranhas da minha misericórdia; e farei com que ela respire o sopro da minha divindade e será toda renovada interiormente”.

 Este texto diz muito bem sobre o encontro e o que acontece naquele que lê. Quando faço “Lectio”, procuro o Senhor na palavra: “se alguém me procurar...” . É como se Jesus segurasse o livro em suas mãos. Ao ler, a leitura desperta os desejos (“vou aspirar os desejos dessa alma”) que vão comover as entranhas de misericórdia do Senhor. Aquele que lê é renovado interiormente.

A Escritura nasceu em comunidades vivas. Quando lemos sozinhos, estamos rodeados de uma multidão de testemunhas. A “Lectio Divina” é o prolongamento da Liturgia da Palavra, na comunidade cristã, durante a Eucaristia. É uma palavra não só para mim, mas, na fé, tem repercussão na Igreja.

Pedir o Espírito Santo, conscientizar-se de que é um privilégio único e sinal de aliança, poder escutar a Palavra de Deus. Pôr-se todo na escuta.

Devemos ler, reler, voltar a ler. Pronunciar bem as palavras, se possível em voz alta; como em uma carta desejada, não nos contentamos com uma leitura só, e sabemos até ler nas entrelinhas.

Todos temos dificuldades em ler. Há o vício de ler em diagonal, ler depressa demais, ler para encher o tempo, falta de gosto pela leitura, falta de tempo, de interesse, de método. Pertencemos à civilização da imagem, espectadores passivos da TV ou das revistas. É necessário toda uma aprendizagem, e uma ascese. Ter tempo fixo é ser fiel.

A leitura não pode depender do gosto do momento. A leitura séria impede que o texto seja manipulado e reduzido ao tamanho da nossa idéia.

Ler, copiar o texto mais de uma vez. Ler os lugares paralelos indicados na Bíblia ou nas notas. “A Escritura se interpreta por si mesma” é o grande critério rabínico da “Lectio”.

A Palavra pode ser difícil, estranha, exigente, não dizer nada. Há vazios, silêncios. Não fugir do vazio da tentação de escutar rádio ou folhear revista é lamentável. Não ter medo de sentir a incapacidade de rezar e de o experimentar é uma graça.

“Abre a Bíblia e lê o texto. Não escolhas ao acaso, porque não se desperdiça a Palavra de Deus. Obedece ao lecionário litúrgico e aceita o texto que a Igreja te oferece hoje, ou então, lê um livro da Bíblia do princípio ao fim. Obediência ao lecionário ou obediência ao livro são essenciais para uma obediência cotidiana, para uma continuidade da “Lectio”, para não cair no subjetivismo da escolha de um texto que agrade ou do qual se pense ter necessidade. Procura ser fiel a este princípio. Escolhe talvez um livro indicado pela tradição da Igreja para diversos tempos no ano litúrgico, ou uma das leituras do lecionário ferial. Não multipliques os textos: uma passagem, uma perícope, alguns versículos são mais suficientes! E, se fazes a “Lectio”, nos textos de domingo, lembra-te que a primeira leitura (Antigo Testamento) e a terceira (Evangelho) são paralelas e que és convidado a rezar com estes dois textos. O lecionário das festas é um grande dom, escolhido com muita sabedoria espiritual. O lecionário ferial é mais descontínuo; se isto te atrapalha, é preferível, então, fazer uma leitura contínua de um livro escolhido”. “Seja tua leitura uma escuta (audire) e a escuta se torne obediência (abauride)”.

“Não leias simplesmente com os olhos, mas procura imprimir o texto em teu coração”. Guigo compara a palavra a um cacho de uva que a alma examina, volta o coração e começa a mastigar e triturar e a põe no lagar, enquanto excita a razão a procurar o que é e como pode ser adquirida.

Qual o momento de passar da leitura para a meditação? É dificil precisar o momento exato em que a natureza passa da primavera para o verão.

O objetivo da leitura é ler e estudar o texto até que ele, sem deixar de ser ele mesmo, se torne espelho para nós mesmos e nos reflita algo da nossa própria experiência de vida. A leitura deve familiarizar-nos com o texto a ponto de ele se tornar nossa palavra. Cassiano dizia: “Penetrados dos mesmos sentimentos em que foi escrito o texto, tornamo-nos, por assim dizer, os seus autores”. E aí, como que de repente, damo-nos conta de que, por meio dele, Deus está querendo falar conosco e nos dizer alguma coisa. Nesse instante, dobramos a cabeça, fazemos silêncio abrimos o ouvido: “Vou ouvir o que o Senhor nos tem a dizer!” (Sl 85,9). É nesse momento que a leitura se transforma em meditação.