3. Oração: “Suplicar, louvar, recitar”
A atitude de oração está presente desde o começo da
“Lectio Divina”. Apesar de tudo ser regado com oração, deve haver um momento
especial, próprio, para a prece. Chegou o momento da oração propriamente dita:
“O que o texto me faz dizer, nos faz dizer a Deus?”.
Guigo descreve a importância da oração: ”vendo, pois, a
alma que não pode por si mesma atingir a desejada doçura do conhecimento e da
experiência, e que, “quando mais se
aproxima do fundo do coração” (Sl 63,7), tanto mais distante é Deus (cf. Sl
63,8), ela se humilha e se refugiana oração. E diz: “Senhor, que não és contemplado senão pelos corações puros, eu procuro,
pela leitura e pela meditação, qual é, e como pode ser adquirida a verdadeira
doçura do coração, a fim de por ela conhecer-te ao menos um pouco”.
A atitude de oração diante da Palavra de Deus deve ser
como aquela de Maria que disse: “Faça-se
em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38). Maria foi capaz de receber a
Palavra de Deus, porque a ruminação (Lc 2,19.51) da mesma tinha purificado o
seu olhar e o seu coração.
A oração, provocada pela meditação, inicia-se por uma
atitude de admiração silenciosa e de adoração ao Senhor. A partir daí brota a
nossa resposta à Palavra de Deus.
Fala agora a Deus, responde-lhe, responde aos convites,
aos apelos, às inspirações, aos pedidos, às mensagens que te dirigiu através da
Palavra compreendida no Espírito Santo. Não vês que foste escolhido no seio da
Trindade, no inefável colóquio entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo? Não te
detenhais mais a refletir demasiado; entra em diálogo e fala como um amigo fala
a seu amigo (Dt 34,10). Não procureis mais confirmar teus pensamentos com os
seus, mas busca a ele. A “meditação” tinha por fim a oração. É agora o momento.
Nada de tagarelice, fala-lhe com segurança, com confiança e sem medo, longe de
todo olhar sobre ti mesmo, mas encantado com seu rosto que emergiu do texto no
Cristo Senhor. Dá livre curso a tuas capacidades criativas de sensibilidade, de
emoção, evocação, e coloca-se a serviço do Senhor. Não posso dar-te muitas
indicações porque cada qual sabe reconhecer o encontro com seu Deus, mas não
pode ensiná-lo aos outros, nem descrevê-lo em si mesmo. Que se pode dizer do
fogo, quando este está dentro dele? Que se pode dizer da oração-contemplação no
fim da “Lectio Divina”, a não ser que é a sarça ardente na qual o fogo queima?
(Enzo Bianchi).
Pode ser feita a oração dos salmos. O próprio Jesus usou,
frequente, os salmos e orações da Bíblia. Ele é o grande cantor dos salmos
(Santo Agostinho). Com ele e nele, os cristãos prolongam a “Lectio Divina” pela
oração pessoal, pela oração litúrgicas e pelas preces da Igreja.
A resposta a Deus pode ser de louvor ou de ação de
graças, de súplica ou de perdão, pode ser até de revolta ou de imprecação, como
foi a resposta de Jó, de Jeremias e de tantos salmos.
Como meditação, é importante que esta oração espontânea
não seja só individual, mas também tenha sua expressão comunitária em forma de
partilha.
A Palavra de Deus vale não só pela idéia que transmite,
mas também pela força que comunica. Não só diz, mas também faz. Um exemplo
concreto é o sacramento: a palavra “Isto
é o meu corpo!” faz o que diz. Na criação, Deus fala e as coisas começam a
existir (Sl 148,5; Gn 1,3). O povo judeu, muito mais do que nós hoje, tinha
sensibilidade para valorizar esses dois aspectos da palavra e mantê-lo unidos.
Eles diziam na língua deles: “dabar”, o que significava, ao mesmo tempo,
palavra e coisa: diz e faz, anuncia e traz, ensina e anima, ilumina e
fortalece, luz e força, Palavra e Espírito. Ora, a “Lectio Divina”, que tem
suas raízes no povo judeu, também valoriza os dois aspectos e os mantém unidos.
Pela leitura, procura descobrir a idéia, a mensagem, que a Palavra transmite e
ensina. Pela meditação, e sobretudo pela oração, ela cria o espaço onde a
palavra faz o que diz, traz o que anuncia, comunica a sua força e nos revigora
para a caminhada. Os dois aspectos não podem ser separados, pois ambos existem
unidos na unidade de Deus, no seio da Santíssima Trindade. Desde toda a
eternidade, o Pai pronuncia a sua Palavra e coloca nela a força do seu
Espírito. A Palavra se fez carne em Jesus, no qual repousa a plenitude do
Espírito Santo.
Na oração reflete-se ainda o itinerário pessoal de cada
um no seu caminhar em direção a Deus e no seu esforço de se esvaziar-se de si
para dar lugar a Deus, ao irmão, à comunidade. É aqui que se situam as noites
escuras com suas crises e dificuldades, com seus desertos e tentações, rezadas,
meditadas e enfrentadas à luz da Palavra de Deus (Mt 4,1-11).
Qual o momento que se passa da oração para a
contemplação? Não há resposta. A contemplação é o que sobra nos lhos e no
coração, depois que a oração termina. Ela fica para além do caminho da “Lectio
Divina”, pois e o seu ponto de chegada. Por ser o ponto de chegada, é também o
ponto de um novo começo de leitura, meditação e oração.
4. Contemplação: “Enxergar, saborear, agir”
A contemplação é o último degrau da “Lectio Divina”. Cada
vez, porém, que se chega ao último degrau, este se torna patamar para um novo
começo. E assim, através de um processo sempre renovado de leitura, meditação,
oração, contemplação, vamos crescendo na compreensão do sentido e da força da
Palavra de Deus. Esse processo será sempre incompleto, até que a realidade toda
seja transformadora e se chegue à plenitude do Reino.
“E o Senhor, cujos olhos são fixos nos justos e cujos
ouvidos estão não só atentos às suas preces (Sl 33,16), mas presentes nelas,
não espera a prece acabar. Pois, interrompendo o curso da oração, apressa-se a
vir à alma que o deseja, banhado de orvalho da doçura celeste, ungido dos
perfumes melhores”.
“Ele recria a alma
fatigada, nutre a que tem fome, sacia a sua aridez, faz-lhe esquecer tudo que é
terrestre, vivifica-a, mortificando-a por um admirável esquecimento de si
mesma, e, embriagando-se, torna-a sóbria”.
São Paulo, na carta aos Romanos, depois de falar da
História da Salvação, do chamado dos pagãos, que erámos nós, e da salvação
final dos judeus, exclama: “Ó abismo da
riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são insondáveis seus juízos e
impenetravéis seus caminhos! Quem conhece o pensamento do Senhor? Quem se
tornou seu conselheiro?”.
É um grito de admiração. De louvor, de adoração, de
contemplação. Contemplação é também a capacidade de perceber a presença de Deus
em tudo, nos acontecimentos, na história, nos outros. Esta presença unifica os
casos da vida.
Guigo diz: “A
leitura busca a doçura da vida bem-aventurada, a meditação a encontra, a oração
a pede e a contemplação a saboreia. A leitura leva comida sólida à boca, a
meditação a mastiga e rumina, a oração prova o seu gosto e a contemplação é o
gosto da doçura já alcançada”. O que mais chama a atenção nos escritos de
Guigo é a insistência em descrever a contemplação como uma saborosa curtição da
doçura que relativiza tudo e, como que por um instante, antecipa algo da
alegria que “Deus preparou para aqueles
que o amam” (1Cor 2,9).